domingo, 29 de maio de 2011

A palavra é um desenho que a gente não esquece

Hoje comecei a ensinar minha sobrinha a ler.
 Tudo não passou de uma brincadeira, pedi que ela me mostrasse uns desenhos, peguei uma caneta azul e depois escrevi algumas palavras entre os traçados que ela havia feito com lápis de cor. Ela conversava  como um foguete  e eu  anotava algumas das palavras que ela dizia.
CAMINHA, MAMÃE, PAPAI, TIO, VOVÓ – foram as que ficaram escritas...
Mais tarde eu encontrei este papel novamente e ela reconheceu “mamãe” e “papai”. Me apontava com o dedo dizendo: mamãe tá desenhado aqui, tio!
Minha irmã disse que queria que ela aprendesse a ler logo. A perguntei se ela mesma gosta de ler... Ela me olhou meio de lado e entendi a resposta, que me motivou a dizer que deve ser difícil a uma criança gostar de algo assim, sem ver que a própria mãe, o pai ou alguma criatura que passe instantes da sua vida saboreando palavras em livro, jornal ou outro lugar.
Não tive como não pensar nas escolas e em tantas crianças que não aprendem a ler, ainda que tantos educadores, secretários, ministros, supervisores, queiram muito que isto aconteça. Mas se aprendemos porque somos despertos, encantados, porque desejamos ou nos apaixonamos, onde estas tantas crianças podem ver no mundo as pessoas (inclusive seus educadores) se relacionando com a indescritível experiência da leitura? Não contam as experiências dirigidas a cumprir tabela.
Não é pedir demais que um fulano aprenda aquilo que eu peço com palavras, mas que de fato na minha vida tem uma importância meramente funcional?
Nisto mora uma esperteza destas crianças. Elas ouvem palavras que pedem “leiam! escrevam! copiem!”, mas como elas percebem além das palavras que ouvem, atendem assim aos pedidos que fazemos e ficam escondidos atrás do que dizemos. Elas são sábias na compreensão de que muitas vezes dizemos uma coisa desejando outra. 
Esta sabedoria é um ímpeto que os filósofos preservam ou resgatam na travessia da vida inteira. Vivem em busca da percepção além do óbvio, querem devassar, encontrar além da primeira vista, não se aprisionar na casca.
É desesperador constatar o atendimento a tantas demandas desta campanha para alfabetizar a qualquer custo – planilhas classificatórias, competições para as melhores notas em avaliações nacionais (que garantem o aumento do lucro de muitos). Mas o coração lá quer atender às demandas de planilhas e competições?
Ele quer mais é saber que a Mamãe e o Papai, além de pessoas queridas, também podem ser reinventados com papel e caneta azul. E ficarem lá, desenhados por muito tempo... sempre que  olhados, evocando sabe-se lá que memórias e sentimentos.









domingo, 22 de maio de 2011

Teatro pra Crianças?

Eu simplesmente não tenho uma opinião formada quanto à categorização do teatro para crianças. Teatro pra crianças? Para bebês? Enfim, já conversei com muitos amigos sobre o assunto mas não sei dizer se sou a favor ou contra (ou mesmo se é preciso estar a favor ou contra).
O que hoje acredito mesmo é na sensibilidade das crianças e na ousadia de quem cria arte e a coloca em contato com os pequenos. Não gosto de quando vou assistir um espetáculo infantil e tenho a impressão de estar assistindo a um desenho animado. A televisão e muitas mídias ofertam às crianças um mundo de velocidades alucinadas e aparições instantâneas, que não são ruins por si mesmas, mas se forem a única opção de fruição para uma pessoa, talvez fique difícil para ela saborear outros "frutos", daqueles cuja degustação demanda mais tempo, daqueles que pedem escuta, silêncio, cumplicidade.

Se o teatro também entra nesta onda de "parque de diversões alucinado", quem oferecerá um contra-peso para as crianças descobrirem a vida com  sensibilidade e  imaginação ?

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Até a Lua


Pensei em só colocar o vídeo no facebook como um link  acompanhado de um comentário carinhoso...
 Mas daí pensei: tem músicas que se entrelaçam de um jeito tão especial na vida da gente... sinalizam instantes de percepções, fazem recordar, reafirmam uma fé ou uma descrença. Parece mesmo que vamos colecionando músicas a compor a trilha da nossa vida. E me dei conta que esta “Até a lua” é uma destas para minha trilha.

Me lembro de quando a conheci, participando da oficina de brincadeiras da querida Patrícia Ferraz. A Pati, além da “Até a lua”, trouxe tantas outras toadas, também cirandas, cacuriás e outras lindezas. Trouxe num dos encontros também a própria autora da música estrelada, a Ana Maria Carvalho.
Mais tarde apareceu o Ventoforte na minha vida. E lá dentro dos trabalhos do Vento quem estava? A Ana - guerreira, brincante, suave e forte,  poeta . Mas com o Ventoforte também veio a lembrança de meus 10 anos de idade e a minha primeira apresentação de teatro, lá em Jales, em 1994. “Viagem ao coração da cidade” era o nome da peça, cuja autoria é do Ilo Krugli, diretor do Ventoforte, que um dia me contou que nem se lembrava mais que tinha escrito este texto...
Por estas e outras, às vezes acredito que andamos procurando desde o início as coisas que encontramos no caminho – ainda que lá no início ainda não saibamos bem disto. Ou então, quando não somos mais crianças, andamos em busca daquelas preciosidades que não queremos deixar mortas numa idade esquecida.

Por isto é que “Até a Lua” é tanto em tão pouco. 

segunda-feira, 16 de maio de 2011

UM HOMEM SEM FÉ

Um Homem sem Fé neste Deus que está no além do nosso mundo, está com outro Deus, que não é temido, não mora num espaço extrínseco. Este Deus é o próprio mundo, a própria natureza e é criação infinita, que inclusive nos cria. Nós sim, Finitos, expressão da inteligência deste Deus.
Não há para este deus agenciadores! Assim como não há casa para ele, sua casa é Tudo e em todo canto é lugar para louvá-lo... e tudo é louvação...
Um Homem sem a Fé neste Deus Senhor Juiz, é um Homem que não quer salvar a ninguém, isto já seria se acreditar demasiadamente importante. Não há do que ser salvo, pois a vida é já e não uma espera para uma alegria num além-posterior. Aliás, este homem só quer alegria, alegria como fonte de existência, que ele conhece e sabe que é dela que seu corpo, seus pensamentos, seus afetos precisam estar em sintonia para se expressarem. Esta alegria é sua potência de vida e ela empobrecida é sinônimo de servidão. Significa que esta impotência, esta incapacidade ser alegre, o torna vulnerável às demandas de um mundo fora dele. Ele é vítima de tudo e de todos, uma onda que se movimenta à partir dos inesperados e incontroláveis impulsos dos ventos que vem de fora. 
Um Homem sem esta Fé conhece Deus e sabe da capacidade hábil das manipulações dirigidas às massas. Sabe que a corrente que manipula as crenças, não são diferentes das que manipulam todas as esferas da vida e que  são fundamentais para manter a miséria de tantos alimentando o luxo de poucos. 
Um Homem sem esta Fé não pode estar à mercê de reconhecimentos, precisará conviver com as dores e saber que seus encontros de luz podem não interessar aos outros e ainda assim,  continuarem fundamentais a ele. Importa muito a ele a criação do seu mundo singular.
Um Homem sem esta Fé está em si em permanente Devir, em abandono constante das superstições, de um passado que aprisiona e se cristaliza como unica verdade.

1914, Over Vitebsk, Marc Chagall

E ele dança e está com Deus o tempo TODO.
É um homem artista.

(das escritas à partir de leituras de Espinosa, do que ouvi do Fuganti, dos ensaios do Lúdico Circo...)

sábado, 14 de maio de 2011

Sobremesa


Não quero a faca, nem o queijo
Quero a goiabada

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Água dos Olhos


            “Chora, disfarça e chora...”, canta Cartola esta que entre tantas outras de suas canções tem o chororô e o lamento como indispensáveis. Imagino que estes sambistas não deviam ter a menor vergonha de chorar!
            É lamentável a cultuação que o nosso tempo faz a um riso fabricado, que temos a impressão de podermos comprá-lo com a maior facilidade. As novelas, os out-doors e este tanto de livros “que ensinam a viver”, querem despejar-nos uma idéia de vida barata e alegria a qualquer custo. Não a alegria como potência de vida, como fio condutor que nos anima , mas uma alegria superficial e que não se sustenta ao apagar das luzes.
            Pasteurizados, politicamente corretos, auto-sustentáveis, inclusivos ao extremo e rindo o dia inteiro (sem rugas, de preferência). Dá mesmo uma vontade de evocar Nelson Cavaquinho e destilarmos por aí um mantra seu: “tire seu sorriso do caminho... que eu quero passar com a minha dor...”.
            A alma não atende as demandas colocadas ao Homem Bem-Sucedido deste tempo. Na contramão deste marketing da felicidade de boutique, ela nos cobra o reverso da moeda, o choro estacado, o grito abafado, a lágrima que não rola sob ameaça de uma consciência correta. Adoecemos nesta unilateralidade disfarçada.
            A alma não atende porque sabe que somos escuro e claridade e é só no movimento gerado por contradições é que há vida. É neste movimento  que situamos a possibilidade de escorregarmos da linha da mediocridade, do horizonte aceito, da vida culturalmente almejada. Daí, conscientes e alertas a este lugar mediano, contemplamos e vivenciamos os campos abaixo e acima desta linha. Encontramos o abismo e o céu, o choro e o riso, a água e o fogo, Oxum e Iansã, os dois hemisférios da Terra. Olhamos a importância dos Devaneios sem nos esquecermos do Rigor. Sábios os gregos que tinham em Dioniso toda a manifestação do gozo, da festa e do outro lado a disciplina de um Apolo.
            É como algo que sempre ouço o Ilo dizer: andarmos pela vida acompanhados/guiados pelo velho e a criança – pacientes e novidadeiros. Eis o desafio!

          



Filipeta do espetáculo "Os que riem e os que choram" - texto e direção de Ilo Krugli - Teatro Ventoforte - 2010


          

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Lúdico Circo da Memória - a estréia se aproxima

Vésperas de estréias se assemelham: os trabalhos dos criadores começam a entrar em contato direto uns com os outros e é sempre preciso ajustar aqui, afinar ali, sintonizar acolá... Pouco mais de um mês para a estréia de Lúdico Circo da Memória. 
Ao passo que caminhamos rumo à estréia, o texto que ganha vida, adquire novos significados, como algo muito precioso guardado sendo desvelado no labor diário. E que lindo texto este do Luís Alberto de Abreu! Criado em processo colaborativo junto a um projeto do Grupo Galpão e agora em nova montagem conosco. 
Este dia-a-dia de trabalho tem  aberto uma proximidade e admiração imensa com o lirismo desta escrita e só agora entendo realmente o porquê este autor é aclamado como o maior dramaturgo vivo do Brasil. Dentre outras coisas, lá há quatro personagens presos às suas histórias dentro de uma cidade fria, surda. Eles se debatem perdidos rumo a um destino de fatalidades, tristezas. 
Não poucos momentos eu me senti tal qual estes personagens, praticamente amordaçado e sem saber como lidar e conviver com uma cidade que corre, corre, espezinha suas memórias, rejeita ou subestima seus idosos, crianças e os ditos inválidos. Ainda que as propagandas nos mostrem uma Vida Politicamente Correta, a Realidade nos Escancara a miséria humana, a intolerância, a desigualdade que massacra. Quantas vezes não me senti uma formiga diante das manobras hábeis dos políticos  espertos para eles mesmos... diante da percepção que nossa voz às vezes se "enrouquece"  num mar enlouquecedor. Não fossem as cirandas, as memórias, a fé, certamente  enlouqueceríamos com esta avalanche globalizada de vidas cada dia mais condicionadas.

Deve ser por estas e outras que meu coração se aproxima cada dia mais deste Circo de Memórias. 


São muitas as referências que nos alimentam na criação das cenas. Eu mesmo passei a conhecer um pouco da filosofia de Baruch de Espinosa, um filosofo do século XVII que trata da liberdade humana, da potência de vida e faz cair por terra os sistemas político-reliogiosos que se aproveitam da ignorância das pessoas para a continuação de um estado de dominação. Não é frase pronta dizer que parece que Espinosa, está escrevendo de algum lugar exatamente nos dias de hoje. 


... E tem também a inspiração em Chagall. Imagens, sonhos, memórias, dialogando com nossa caminhada na construção de um espetáculo.

Promenade - Marc Chagall - 1917-18

18 e 19 de junho, estaremos lá! 

sábado, 7 de maio de 2011

No Quintal do Anibal...

Graças à coragem de uma equipe de educadores, diretora, coordenadora, funcionários, já é possível encontrar uma paisagem, um clima diferente na EMEB Manoel Anibal, escola pública do município de Jundiaí. 
Para fugir deste modelo mais que ultrapassado e vigente que impera na educação atual, os seres humanos que trabalham lá, descobriram que não há outra coisa a fazer para que haja uma transformação da escola, a não ser mexer nos pontos de vista, nas relações das próprias pessoas que habitam aquele lugar. Cursos avançados com equipes incríveis? Materiais didáticos ultra-modernos? Nada disto importa muito neste processo de transformação, se os pilares que fundam uma escola, não são considerados DE VERDADE. E é por isto que graças ao capitaneio da diretora (que é também atriz do Teatro Ventoforte) a escola vive hoje um Projeto de Construção, de Desenvolvimento de Aprendizagem, chamado "Pedagogia do Quintal". Dentre outras partes que compõem este projeto, muitos dos que trabalham na escola vivenciam semanalmente oficinas de teatro e de música. Desta maneira, saímos um pouco da falácia repetitiva dos HTPCs para vivenciarmos com os corpos, em outros níveis que são paralelos às relações "reais". Não que os encontros para refletir, conversar, tenham sido excluídos do cotidiano da escola. Eles existem e são pontos chaves para exercitar os pensamentos!
Convivo lá dois dias na semana trabalhando com as oficinas de teatro. Confesso que tem sido uma experiência provocadora e muito nova para mim. Após sete anos como professor de uma rede de ensino, fugi de uma escola. Estava à beira de uma depressão forte, prometendo a mim mesmo que nunca colocaria meus pés dentro de uma escola para trabalhar novamente. Descumpri a promessa e lá estou à convite da Rita Rozeno, minha amiga, diretora da escola, guerreira, corajosa no leme desta embarcação toda. Além de mim, existem as Oficinas de Música com o Adhê Francisco e outras mais esporádicas, como a que aconteceu recentemente de "Contação de Histórias", com Kika Antunes. 
Sempre dá um frio na barriga esta aventura de dar uma oficina, de movimentar e provocar vivências. O frio se eleva quando não estamos num campo onde nem todos foram lá para realmente "ter esta oficina", onde o tal público alvo não foi ali inteiramente para este interesse. Há o período de estranhamento e é por isto que as oficinas estão abertas àqueles que desejam. 
Misturamos todos no grupo, educadores e funcionários. Brincamos, lidamos com a consciência dos corpos, tocamos no imaginário, provocamos situações lúdicas e o mais curioso é acompanhar esta experiência se integrando lentamente no cotidiano da escola: num canto de crianças brincando, passam dois adultos brincando de cego e de guia... uma roda em que brincamos de cantar e dançar é invadida por um pequenino batuqueiro... Fico às vezes tentando pensar o que imaginam as crianças ao verem os adultos rolarem, dançarem, rirem pelos corredores da escola. Talvez elas achem a coisa mais natural desta vida e que o não-natural seria o avesso disto: adultos sempre sisudos, correndo fatigados de lá para cá, que nunca brincam e mal se olham entre si.