Foi numa crônica do psicanalista
Hélio Pellegrino que entendi o porquê gosto tanto de ver os defuntos sendo
velados.
Já faz tempo que tenho esta mania! Acho mesmo
que desde criança trago uma curiosidade que me faz visitar outros cômodos de
velórios ao invés de dedicar meu luto somente ao conhecido que fui destinar
minha atenção.
Hélio conta sobre o grande
recolhimento da feição do seu amigo no caixão, suave, como quem ouve uma
música. Pois é isto exatamente que me chama a ver os mortos: suas feições de
quem ouve música e como estão mortos, a música
que ouve é um segredo inviolável.
Mas existem os mortos que
percebemos nitidamente não estarem ouvindo música ou caso estejam, não é do seu
agrado. Seriam estes os verdadeiros desmerecedores das alegrias eternas?
A entrada da eternidade é o
recolhimento junto a uma música que se ouve em segredo. Podem reparar no
próximo velório... Caso seja o meu e eu tenha a oportunidade de escolher a
música (ou o repertório), não revelarei aqui com medo de ter meu direito
auditivo interdito pela audácia humana.
Mas a pressão do tempo nos nossos
dias já faz aparecer a economia até na bendita hora da encomendação das almas.
Falam até de velórios fast-foods - uma passadinha de carro numa janelinha, uma
velinha rápida por ali mesmo e pronto – até a morte foi cooptada pela
praticidade...E nesta possibilidade higienizada demais, eficiente demais, como fica o morto abandonado ouvindo sua
música em recolhimento? Sim, porque apesar do seu recolhimento, a outra parte
essencial deste acontecimento é o mistério da música que ouve para nós. Sem a
presença dos queridos, acredito sinceramente que este momento tão especial ao
desencarnado, esteja frontalmente ameaçado.